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A “nova” TVE não é pública, é do Sartori

A “nova” TVE não é pública, é do Sartori

Antônio Escosteguy Castro 

(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Ainda repercute nos meios políticos e jurídicos do estado a medida liminar concedida pelo Tribunal de Contas em cautelar proposta pelo Ministério Público , que suspendeu o processo de extinção das fundações autorizado pela Lei 14.982/17. Aquela decisão, da lavra do Conselheiro Cezar Miola, determinou a realização de uma fiscalização in loco pela área técnica do TCE para assegurar-se de que de fato haja um “plano de transição para a extinção das fundações” que assegure a continuidade dos serviços públicos por elas prestados, quase todos previstos na Constituição estadual.

Muito embora o centro da preocupação a ser protegida pela decisão acima citada seja a continuidade administrativa, não é demais observar, porém, que nossa Corte de Contas expressou suas reservas acerca da propalada economia a ser alcançada por ditas extinções, afirmação que os fatos insistem em não confirmar , como se viu da recente contratação da FIPE ( Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) para calcular o PIB do Rio Grande do Sul pelo dobro do preço que custaria aos cofres públicos se dito trabalho fosse feito pela FEE…

Mas é no âmbito da continuidade dos serviços prestados que este artigo se deterá, em particular em relação à TVE ( Fundação Cultural Piratini) , já que um dia antes da concessão da medida liminar do TCE, o Estado firmara o decreto 54.012 , que reestruturava a SECOM (Secretaria de Comunicação) para que esta recebesse a rádio e a televisão educativas , assim que a extinção da Fundação fosse publicada. E o exame deste decreto 54012 é a comprovação de que a extinção da TVE fere a lei e a Constituição.

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira de nossa história a ter um setor especialmente dedicado à Comunicação Social, composto de cinco artigos ( 220 a 224) no Capítulo V do Título VIII, da Ordem Social. Nestes, se destaca o art.223 que institui o chamado Princípio da Complementaridade , um dos fundamentos básicos da normatização do Sistema de Comunicação no país, tornando obrigatória a presença do estado neste sistema. O Rio Grande do Sul ,portanto, não pode deixar de prestar os serviços de radiodifusão pública hoje prestados pela TVE.

É evidente que disposição desta natureza daria origem a muita discussão, mas o debate vai se esgotar com a edição da Lei 11.652, de 7 de abril de 2008 que, ao lado de autorizar o Governo Federal a criar a EBC- Empresa Brasileira de Comunicação, “ institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta”.

Muito embora seja uma lei que se dirige ao “âmbito federal” , é o primeiro diploma legal que regula o art. 223 da Carta Magna e ele estabelece princípios ,objetivos e conceitos gerais que certamente são aplicáveis a toda esfera de comunicação estatal e pública, em qualquer nível, seja federal, estadual ou mesmo municipal.

O art. 2º da Lei 11.652 estabelece nove princípios e o art. 3º dez objetivos e conceitos que irão caracterizar , então, “ o serviço de radiodifusão pública prestado por órgãos do Poder Executivo”. A lei, portanto, define que o caráter público da radiodifusão se dá pela verificação de uma série de características inerentes especialmente ao conteúdo da programação que apresenta e à participação da sociedade na definição desta.

O primeiro centro diferenciador, portanto, é a programação, seu conteúdo e pluralidade. Mas o fator essencial para definir uma emissora estatal como prestando serviços de radiodifusão pública é a participação da sociedade civil e de seus representantes (e não apenas de agentes políticos do estado) em sua administração , inclusive e particularmente na definição de sua programação. Dois dos princípios listados no art. 2º da Lei 11.652 dizem respeito a esta condição:

VIII – autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão; e

IX – participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira.

A programação ” educativa” , qualquer que seja ela, em tese pode ser produzida por qualquer tipo de emissora , até pelas emissoras privadas e comerciais. O que de fato vai diferenciar uma emissora privada de uma emissora pública será a presença de representantes da sociedade civil em seus órgãos de deliberação e gestão , bem como a autonomia desta em relação a seu ” acionista majoritário” , o ente estatal que a criou.

Não restem dúvidas de que a velha TVE se encaixava , com precisão, na definição de emissoras ( rádio e TV) de radiodifusão públicas. Já em 1999 , antes mesmo da Lei 11.652, o Conselho Deliberativo da FTVE aprovava diretrizes e bases para a programação que em tudo se assemelham às definições posteriores da legislação.

O decreto 54012 do Governador do Estado do Rio Grande do Sul é a antítese de tudo que foi acumulado pelo ordenamento jurídico brasileiro sobre radiodifusão pública desde a Carta Magna de 1988.

O primeiro elemento que salta aos olhos é que as emissoras de rádio e tv serão submetidas a um órgão, a SECOM, que se encontra dentro da estrutura do Gabinete do Governador do estado. Em outras palavras, a TVE se transformou numa satrapia do governador…

É evidente que esta vinculação direta ao Chefe do Executivo torna impossível a existência de real autonomia em relação ao governo para definição de seu conteúdo, como expressamente exigido na lei 11.652 para caracterizar uma emissora como pública.

E , mais, é farta a jurisprudência nos tribunais vedando qualquer autoridade real a conselhos compostos por membros da sociedade civil no âmbito da Administração Direta. Sob os mais diversos argumentos, de usurpação do voto popular ao engessamento da máquina pública, são comuns as decisões judiciais que, frente à norma que concede poder deliberativo a conselhos de caráter popular , lhes retiram ditos poderes para proteger a competência do Executivo , particularmente , repita-se , quando na estrutura da Administração Direta. Por mais que se possa ( e se deva) criticar tal entendimento por sua estreiteza na compreensão do conceito de soberania popular , esta é , infelizmente, a realidade dominante hoje em nosso Judiciário.

Assim, depreende-se que a vinculação das emissoras à SECOM também impedirá que se organize de modo eficiente e real a participação da sociedade civil no controle da radiodifusão pública, como igualmente exige a lei 11.652.

Mais grave fica a situação, ainda, ao examinar-se o que a nova estrutura prevê para o jornalismo das emissoras de rádio e tv. É criada uma Divisão de Rádio e uma Divisão de TV no Departamento de Jornalismo da SECOM ( art. 4º ), que certamente irão cuidar do noticiário e da cobertura jornalística das ” novas ” TVE e FM Cultura . E o art. 8º do decreto 54012 assim estabelece sobre as competências deste Departamento:

Art. 8º Ao Departamento de Jornalismo compete: I – formular, coordenar e executar a política de comunicação no âmbito jornalístico do Poder Executivo, bem como suas diretrizes de comunicação, tanto da Administração Direta quanto da Administração Indireta; II – coordenar as atividades realizadas pelos assessores de imprensa do Governo; III – unificar a linguagem dos órgãos e das ações jornalísticas governamentais; IV – produzir e distribuir informações de interesse público referentes a atos e a ações governamentais, em todas as suas formas; e V – coordenar a elaboração, produção e distribuição de informações de interesse público, por meio dos canais de comunicação da administração pública estadual.

Fica evidente que a TVE e a FM Cultura ficaram reduzidas à propaganda do Governo do Estado e à distribuição de informações ” governamentais” , como dito de forma simples e clara nas competências do Departamento de Jornalismo da SECOM.

Chama a atenção o ” silêncio estrondoso” de nossa grande mídia plutocrática , em geral tão ávida a defender a liberdade de imprensa, frente a um atentado tão evidente a esta como reduzir as emissoras públicas à satrapia pessoal do Governador e à sua propaganda. Seria de imaginar qual a reação dos colunistas de nossos jornalões se Olívio Dutra ou Tarso Genro submetessem a rádio e tv públicas à sua autoridade pessoal direta. Bolivarianos! , seria o mínimo que diria a AGERT, em assembleia geral extraordinária especialmente convocada…

De qualquer forma, o decreto 54012 desnuda o projeto do Governo Sartori para as emissoras de rádio e tv da TVE após a extinção da Fundação. E fica claro que dito projeto fere a Constituição Federal, particularmente em seu art. 223, e a lei que o regulamenta, a lei 11.652.

E ,mais, o estudo destas normas torna claro que as exigências legais e constitucionais para caracterizar uma emissora de radiodifusão como pública são, na verdade, incompatíveis com sua submissão à Administração Direta. Somente as estruturas mais flexíveis da Administração Indireta podem realizar as exigências de autonomia de conteúdo e participação da sociedade civil indispensáveis numa emissora pública.

Conclui-se , portanto, que mesmo antes da realização da fiscalização determinada pelo TCE, a publicação do decreto 54012 permite afirmar que a solução proposta pelo Governo do Estado não assegura a continuidade do serviço de radiodifusão pública antes prestado pela Fundação Cultural Piratini.

Fonte: Sul21